segunda-feira, 21 de novembro de 2011

A CONSTRUÇÃO DO NÚMERO

A CONSTRUÇÃO DO NÚMERO

Viviane Salvi Gertge

Professora de Ciências e Matemática, licenciada pela PUC/FAPA

RESUMO

Este artigo propõe-se a fazer uma reflexão sobre o desenvolvimento por parte de crianças em idade pré-escolar do conceito de número. Para entender esta construção, foi necessário fazer uma viagem histórica sobre como a humanidade foi respondendo questões de como se aprende. Desde as correntes filosóficas do empirismo e do racionalismo, passando pelo construtivismo de Piaget, procuro desenvolver um diálogo de como esse processo foi se desenvolvendo ao longo dos séculos. Em seguida abordo quais as estruturas mentais que as crianças necessitam adquirir para construir o conceito de número e finalizo o artigo fazendo uma apreciação de quais procedimentos didáticos os professores podem utilizar para ajudar as crianças a desenvolver o conceito de número.

Palavras-chave: Construção do número. Piaget.

Como professores de matemática, é muito comum ao conversarmos com as famílias dos nossos alunos, obtermos informações do tipo: “Com quatro anos, ele já sabia contar até cinqüenta”. “O seu irmão menor de dois anos já conta até dez”. Cada vez é mais comum a precocidade das crianças em o contato com os números. Até duas décadas atrás, crianças pequenas tinham contato com números principalmente pelo canal da TV, número de telefone, número da casa, etc. Hoje em dia, além do contato corriqueiro com os números, vemos crianças de dois e três anos, lidando com vídeo-games, informática, seqüências numéricas grandes para liberar determinadas fases de jogos eletrônicos, que espantam qualquer adulto.

Mas como será que as crianças desenvolvem o conceito de número? Para responder a esta questão, primeiramente vou discutir como a história tem encarado a pergunta de como o ser humano aprende e quais as principais correntes filosóficas que vão, através dos séculos tentando responder a esta questão.

Logo em seguida, baseada nos estudos de Piaget, vou discorrer sobre como se dão os processos de construção do número e quais as operações de pensamento que já devem estar consolidadas para que este conceito possa ser desenvolvido pela criança. Termino este artigo com uma reflexão sobre como os professores, através de suas intervenções pedagógicas, podem ajudar as crianças na construção do número.

Como o ser humano aprende?

Duas correntes filosóficas anteriores à época dos gregos tentam explicar este complexo tema: os empiristas e os racionalistas.

Há séculos, a educação se baseia no empirismo, defendido por filósofos como Locke, Berkeley e Hume. De acordo com esta corrente, a fonte do conhecimento é exterior ao ser humano. Este é adquirido pela internalização da experiência por meio dos sentidos.

Base da escola tradicionalista, os empiristas encaram a aluno (criança) como uma “tábula rasa”, onde o conhecimento é exterior e vai sendo impresso na mente das crianças. Segundo Kami (2005, p.11) “De acordo com o empirismo e o senso comum, os seres humanos adquirem o conhecimento pela internalização que dele fazem a partir do ambiente (ou seja, de fora para dentro)”.

Já o racionalismo, não nega a importância da experiência sensória, mas afirma que a razão é mais importante e poderosa do que os sentidos. Filósofos como Descartes, Spinoza e Kant são os principais defensores desta corrente.



Eles indicavam, por exemplo, que pelo fato de nossos sentidos nos enganarem por meio das ilusões perceptivas, não se pode confiar nas experiências dos sentidos como fonte da verdade. O rigor, a precisão e a certeza da matemática, foram a melhor prova que os racionalistas obtiveram do poder da razão (KAMII, 2005, p.12).

Entre estas duas correntes, por volta de 1920, surge um novo estudo iniciado por Jean Piaget. De acordo com Piaget (1920), a questão do conhecimento humano não poderia ficar à mercê de discussões filosóficas, mas sim, deveria ter uma base científica sobre a qual apoiar-se. Com essas premissas, Jean Piaget começa a trabalhar com testes de inteligência infantil.

Primeiramente, Piaget não descartou nenhuma das teorias filosóficas discutidas anteriormente, pois notava nas duas teorias elementos de verdade. Como biólogo, entretanto, achava que explicações científicas deveriam ser buscadas para entender como se processa o conhecimento humano.

Mas qual a origem e a fonte do conhecimento humano? De acordo com Piaget, a fonte de conhecimento humano se dá em três níveis: o conhecimento físico, o conhecimento social e o conhecimento lógico-matemático.

O conhecimento físico é aquele que as nossas sensações nos ajudam a descobrir. Dá-se no mundo exterior e está parcialmente nos objetos. “O conhecimento físico pode ser adquirido empiricamente por meio da experiência e da observação” (KAMII, 2005, p. 13).

O conhecimento social é o conhecimento cultural, herdado por nossa sociedade. Todas as formas de manifestação que adquirimos por transmissão são formas de conhecimento social. Um exemplo bem claro deste fato em matemática é quando crianças pequenas são “treinadas para contar”. A seqüência “um, dois, três” e assim por diante é um exemplo de conhecimento social que a criança adquire.

Embora não seja recomendável o ensino da matemática calcado unicamente em memorização de regras e definições, não se pode desprezar essa forma de reter o conhecimento. Ao estudar matemática, é necessário que decoremos a sequência de números naturais, os nomes da figuras geométricas e muitos outros dados (TOLEDO, 1997, p.18).

O conhecimento lógico-matemático se desenvolve através das relações mentais que sujeito e objeto vão estabelecendo ao agir um sobre o outro. A principal fonte dessas relações é a mente de cada pessoa. Noções como semelhança, diferença, forma são exemplos de conhecimentos lógicos-matemáticos.

Assim, enquanto o conhecimento físico deriva das propriedades físicas dos próprios objetos, o conhecimento lógico-matemático tem origem no próprio sujeito. Na verdade, porém, é impossível separar totalmente os três tipos de conhecimento, pois eles sempre se apresentam juntos (TOLEDO, 1997, p.18).

Piaget demonstra que a construção do conhecimento se dá através de fontes externas e internas, enquanto o conhecimento físico e o conhecimento social se processam fora do sujeito, o conhecimento lógico-matemático se dá no interior do indivíduo.

Baseado em experimentos, Piaget demonstrou que a interação é a fonte do conhecimento humano, dando origem a uma nova forma de entender a educação: o construtivismo, teoria que explica como se dá a construção do conhecimento.

Como as crianças constroem o conceito de número?

Com o reconhecimento das fontes do conhecimento humano, Piaget desenvolveu os seus estudos sobre a temática da construção do número pela criança. Determinou através de inúmeros testes, que a criança para construir este conceito, anteriormente necessita desenvolver algumas estruturas mentais: a ordem e a inclusão hierárquica. Para a pesquisadora piagetiana Constance Kamii (1984, p.19), “o número é uma síntese de dois tipos de relação que a criança elabora entre os objetos. Uma é a ordem e a outra é a inclusão hierárquica”.

Para poder desenvolver estas estruturas mentais, a criança necessita buscar fontes de conhecimento externas e internas ao seu próprio sujeito.

O desenvolvimento da relação de ordem se refere à capacidade que a criança vai adquirir através de experiências sociais e culturais, desenvolver uma maneira de arranjar objetos de tal forma que um fique em primeiro, outro em segundo e assim por diante. No ensino infantil, com crianças por volta dos quatro anos, observamos a tendência que elas têm de ordenar uma coleção e proceder à contagem. É muito comum, nesta idade, pularem alguns elementos ou contarem duplamente outros. Nesta fase evidenciamos o conhecimento sociocultural. A criança ainda não sente a necessidade do conhecimento lógico-matemático.

Quando observamos uma criança em seus primeiros contatos com os números, percebemos que, ao contar, ela recita os nomes dos números, do mesmo modo que recitaria o nome de algumas pessoas. Assim depois de contar cinco brinquedos ela mostrará o quinto brinquedo contado, com se cinco fosse o nome dele (TOLEDO, 1997, p.21).

Concomitantemente com o desenvolvimento da relação de ordem, as crianças vão desenvolvendo outra estrutura de pensamento, a inclusão hierárquica. Esta estrutura permite que aos poucos a criança vá percebendo que o um está incluído no dois, o dois no três e assim por diante. De acordo com Piaget, estas estruturas lógico-matemáticas só estarão bem estruturadas por volta dos sete anos e meio. É a partir desta idade que, segundo Piaget, as crianças se tornam reversíveis, ou seja, “são capazes de executar mentalmente duas ações opostas simultâneas – neste caso dividir o todo em duas partes e juntar as partes em um todo novamente.” (KAMII, 2005, p. 13).

A conservação do número pode então ser entendida como uma estrutura lógico-matemática que acontece gradualmente através do desenvolvimento de estruturas mentais de ordem e de inclusão de classes.

O que fazer então, para ajudar os nossos alunos pequenos a desenvolver estruturas mentais que possibilitem a construção do número, já que estão cada vez mais cedo chegando à escola?

Antes de submeter as crianças a conceitos de números, numerais e algarismos (como era feito antigamente) é preciso que o professor tenha em mente que a construção do conceito de número ainda está se formando, e que estes conceitos não podem ser ensinados, mas sim construídos pelas próprias crianças e que esta construção só estará pronta por volta dos sete anos e meio.

Proporcionar às crianças o contato com materiais concretos que vão trabalhar atributos, classificação e representação, desde a pré-escola, vai ajudá-las na formação de conceitos básicos de matemática. “Dominar as idéias matemáticas básicas, usá-las eficientemente, exige constante aprofundamento da compreensão que delas tem o que se pode conseguir aprendendo-se a utilizá-las em formas progressivamente mais complexas” (BRUNER, 1974, p.12).

Não adianta “ensinar” conceitos matemáticos a crianças pequenas, mas sim de forma lúdica, iniciar um trabalho de classificação utilizando sucatas, objetos escolares, blocos lógicos ou outros materiais isomorfos a eles. Com a continuidade do processo, aos poucos elas vão inventando e reiventando conceitos já trazidos da sua vida para dentro do ambiente escolar e fazendo novas relações.

Por exemplo, coordenando as relações de mesmo e diferente, que inicialmente criaram entre dois objetos, as crianças começam a produzir classes e subclasses. Quando são capazes de criar classes e subclasses, elas passam a deduzir logicamente que há mais animais no mundo do que há cachorros, sem ter que contar empiricamente todos os animais no mundo (KAMII, 2005, p.13).

É através de atividades como jogo livre, com regras, isomorfos entre si, atividades relacionando jogos com representações, que as crianças vão tendo condições de desenvolver o pensamento lógico-matemático e começar a fazer representações: por meio de desenhos, diagramas e outras formas que a sua criatividade permitir. Neste momento o professor pode acompanhar atentamente e reconhecer as fases de desenvolvimento em que seus alunos estão verificando desta forma quais as estruturas e esquemas que estão, naquele momento, envolvidos, podendo, desta forma planejar o próximo passo para que seus alunos continuem desenvolvendo as estruturas mentais de ordenação e inclusão de classes, indispensáveis para a construção e conservação do conceito de número.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRUNER, J. Processo da educação. 4 ed..São Paulo: Companhia Nacional, 1974.

KAMII, C. A criança e o número. 7 ed.. Campinas: Papírus, 1984.

KAMII, C. Crianças pequenas continuam reinventando a aritmética – Implicações da teoria de Piaget. In: JOSEPH, Linda Leslie. 2 ed.. Porto Alegre: Artes Médicas, 2005.

TOLEDO, M. Didática da matemática – Como dois e dois: A construção da matemática. In: TOLEDO, Mauro. São Paulo: FTD, 1997.


Nenhum comentário:

Postar um comentário